Kandoku chouaku (2012) / Yasuha Kominami

SAYONARA-NOSTALGIA
4 min readFeb 9, 2022

O que acontece com o mundo se eu desaparecer?

O Japão tem uma das maiores indústrias fonográficas do mundo, e como as crianças são incentivadas a aprender a tocar algum instrumento na escola desde cedo, não é incomum o surgimento de tantos artistas diferentes. Nesse cenário, uma banda que ascende antes dos 20 anos, recém saída do Ensino Médio, é bastante elogiável. Muitos outros artistas tentam até alguns anos após terminar a faculdade e, conforme o tempo vai passando, as chances de uma revelação musical se torna cada vez mais rara. É bem difícil ver um artista lançar seu primeiro álbum por uma grande gravadora depois dos 30 anos, por exemplo.

A Yasuha Kominami até tentou perseguir o caminho da música, mas não conseguiu. Ficou deprimida, mudou pra Austrália e decidiu que nunca mais ouviria a língua japonesa na vida. Só que um amigo próximo acabou falecendo, o que a levou de volta pra terra natal; lá, ela ouviu Sayonara COLOR, do SUPER BUTTER DOG, uma canção sobre as possibilidades que surgem de uma despedida. Ela ficou fascinada, pegou seu violão e tentou mais uma vez. Dessa vez, ela conseguiu: poucos meses depois, Soupy World estava no ar com uma explosão dissonante numa casa desarrumada, a lead track de Kandoku chouaku, seu álbum de estreia com venda apenas nas lojas da TOWER RECORDS.

Uma garota de 27 anos com a voz um tanto esganiçada e postura agressiva chamou a atenção de muita gente, e várias expectativas foram depositadas. Não só no Japão como também pra fãs ocidentais, a ideia de uma mulher fazendo música com um pé no lado experimental é sempre um agito: o maior exemplo disso sendo o boom da Haru Nemuri em 2018. Tenho muitas opiniões a respeito disso, mas não acho que caiba nessa resenha. Posso só deixar declarado que a postura de tomar pra si algo que não foi feito pra você e depois se decepcionar com as próprias ilusões é uma atitude de quem trata os supostos objetos de adoração com condescendência, e não com um pingo de apreciação genuína.

As expectativas altas não estavam somente do lado de cá, mas na própria criação desse álbum: participam Tetsuyuki Mori (que produziu o Mori-pact disc do Utaite Myouri, da Shiina Ringo [!]), Kentarou Nakao (baixista do NUMBER GIRL e do ART-SCHOOL), Hajimetal (tecladista do extinto Midori), Kensuke Nishiura (ex-baterista do Soutaiseiriron), entre alguns outros. Esse time de colaboradores ajuda a entender a dimensão desse CD, e também o peso que estava sobre os ombros da Kominami que, depois de 5 anos, anunciaria um hiato por tempo indeterminado para tratar de questões de saúde (e ela também declarou que não tem mais interesse em fazer música).

Wara-ningyou feito pela Kominami ao vivo durante um programa de rádio de Hiroshima como presente ao apresentador.

Um dos hobbies da Kominami era fazer wara-ningyou, bonecos de palha da tradição japonesa que se assemelham a vudu: são utilizados para matar ou fazer mal a algum alvo específico. Ao mesmo tempo em que fazia seus primeiros shows no Japão, ela vendia os bonecos de palha. Junte esse fato às letras das canções desse trabalho, que falam muito sobre o desejo de desaparecer do mundo e de se render à vontade de morrer… Menina esquisita com interesses no sobrenatural e letras de violenta depressão? Sign me up!

Sekai douji tahatsu love kebyou netsuzou ballad fuhoutouki

Kandoku chouaku é uma expressão criada pela própria Kominami que significa ‘beber veneno para eliminar o mal’. Nesse álbum, há muitos paralelos apresentados nas letras: existem médicos por que existem doentes, e há professores por causa de alunos; pessoas astutas existem em virtude dos idiotas, então podemos afirmar que, da mesma maneira, o bem está para o mal…? A Kominami não cai nesse maniqueísmo, atestando desde o título que, se o mal existe, ele deve ser combatido com algo da mesma natureza: veneno, por exemplo.

Ontem escrevi sobre a vulnerabilidade da Sharon, e como isso acaba indicando justamente o oposto, força. A voz da Kominami tem aquilo que eu aprecio muito que é uma rouquidão que, ao subir ou descer de tom, parece prestes a quebrar. Nas canções do Kandoku chouaku, há sempre algo irascível, uma certa brutalidade que já começa na voz da cantora. Ao olhar através disso, podemos nos surpreender ao encontrar uma pessoa muito gentil que não sabe como, mas deseja proteger todos ao seu redor. Em Soupy World, por exemplo, ela rejeita a ideia de que a felicidade de alguém necessita da infelicidade de outros, determinando-se a misturar todos os ingredientes até que eles se tornem tão indistinguíveis quanto o resultado final da sopa — é difícil viver, e talvez até seja impossível não passar por cima dos outros. Mas, para a Kominami, não existe outra opção, mesmo que isso signifique um rompimento radical.

Todo esse caos nos conduz ao encerramento do miniálbum, a canção de aniversário HOME. Apenas com voz e violão, ela canta a respeito da importância de celebrar pelo menos um momento em nossas relações com os outros. As relações com muitos de nossos familiares por vezes são difíceis e turbulentas; com amigos também, quando caímos numa rotina — torna-se fácil perder de vista pequenos gestos. Você sabe o quanto te amo e o quanto você é importante pra mim, não tenho como te falar isso todo dia. Mas hoje, no seu aniversário, talvez seja o momento de tentar encurtar as distâncias alargadas pelo dia a dia. Não sei direito o motivo, mas sempre fico extremamente emocionado no momento em que ela começa a cantar Happy birthday to you

Happy birthday to you, Kandoku chouaku.

Ouça: Spotify, Apple Music.

--

--

SAYONARA-NOSTALGIA

Queria dizer adeus-nostalgia, amanhã seremos mais jovens do que hoje.