PORTAL (2012) / Galileo Galilei

SAYONARA-NOSTALGIA
5 min readJan 25, 2022

Desde o familiar ontem, ao amanhã ainda desconhecido.

PORTAL

Toda vez que alguém me pergunta como conheci música japonesa, eu fico um pouco envergonhado de revelar o caminho mais comum que a maioria das pessoas também percorreu: a partir de animes. Não que eu rejeite meu passado como otaku (que nunca ocorreu!), é que sinto que comecei a gostar de anime antes de isso se tornar uma personalidade com traços pré-definidos. Atualmente, existem diversas micro-identidades e cada uma delas já vem composta de um set com valores morais, estéticos e sociais: basta escolher uma (ou mais!) e se comportar e consumir de acordo. Acontece que eu nasci nos anos 80 e nunca consegui me enquadrar nesse tipo de socialização — afinal, cresci como outsider que aprendeu a suspeitar de qualquer grupo que me aceite como membro. Em outras palavras, nunca pude me dizer otaku pois, apesar de 50% europeu, sempre tomei banho todos os dias.

Por volta de 2010, voltei timidamente a assistir a alguns animes de forma mais ou menos regular. Grande parte disso se deve ao NoitaminA, cuja programação é um pouco mais fora da caixa (falando sério agora, me afastei dos animes pois, em termos gerais, além dos fãs irritantes, há sempre uma gritaria constante, enredos que se desenvolvem rumo à mesma conclusão e uma gritante ausência de desenvolvimento das personalidades dos personagens). Em 2011 eu acompanhei AnoHana, um anime sobre lidar com os fantasmas da infância sem se entregar à nostalgia (que, coincidentemente, é a proposta desse blog!), cuja abertura é ‘Aoi shiori’, do Galileo Galilei.

Aoi Shiori

Eu acompanhava o Galileo Galilei desde 2008, quando eles venceram o Senkou Riot, competição de bandas da Sony Music Japan voltada a artistas menores de idade. Eles foram a primeira banda que fizeram com que eu me sentisse velho, ao ver que todos os integrantes tinham só 17 anos! No começo, havia uma forte influência de BUMP OF CHICKEN; foi com o lançamento do PORTAL, há exatos dez anos, que isso começou a mudar, abarcando também a estética sonora de bandas de indie rock ocidentais.

É diferente assistir a uma abertura de anime cantada por uma banda que você acompanha; uma música que você ouviria de qualquer forma, só que no contexto para o qual ela foi (provavelmente) composta. Era como se aquela animação no início de AnoHana falasse apenas para mim, uma intimidade que nenhum outro telespectador conseguiria apreciar. Assim, o PORTAL foi um álbum super aguardado por mim. Agora em retrospecto, esse foi o último lançamento do Galileo Galilei de que eu gostei muito; depois disso, chegava a ouvir as músicas quando eram lançadas mas pouca coisa me chamava a atenção, e gradualmente fui perdendo o interesse até a banda terminar, em 2016.

Esse segundo álbum do Galileo Galilei é um divisor de águas na carreira da banda: ele foi inteiramente composto e gravado no estúdio montado na casa do vocalista, Yuuki Ozaki, no ponto mais ao norte do Japão, pois a banda não conseguiu se adaptar à vida em Tóquio; foi o primeiro a assumir de vez as influências de indie rock ocidental contemporâneo; a banda virou um quinteto, admitindo um tecladista, e todos os integrantes participaram da criação das melodias das faixas. Depois desse lançamento, o tecladista que tinha acabado de entrar e o guitarrista Fumito Iwai saíram da banda, que passou a ser uma three-piece e como consequência, as composições seguintes passaram a depender mais e mais de loops e recursos eletrônicos.

É um álbum comprido, com mais de uma hora de duração e duas faixas instrumentais, mas ainda assim não é nada arrastado. A produção é muito detalhista e delicada, e talvez por influência da capa, me remete à uma cidade costeira. Aliás, esse álbum é quase conceitual (algo por que prezo MUITO), com as músicas contando uma história de maneira sutil e diferenciada — a última faixa é o primeiro capítulo desse conto de formação, convidando os ouvintes a uma segunda audição dessa vez tentando buscar aqueles pontos que passaram despercebidos.

Good Shoes

Quando somos crianças, pensamos como crianças, sentimos e falamos como crianças; ao chegar à idade adulta, nos forçamos a deixar as coisas de crianças para trás. É só com o passar dos anos, com mais maturidade, que ficamos capazes de nos reconectar com a infância e agir de forma livre. Esse álbum é feito nesse momento de início da vida adulta, quando achamos que temos todas as respostas — mas nem por isso ele é equivocado ou juvenil. Eu diria que é um esforço de mostrar a juventude e as esperanças de toda uma geração, um reconhecimento de que esse é o primeiro passo, um ponto de partida; um portal.

Há uma única cidade nas letras do PORTAL e os personagens das músicas estão buscando seu lugar no mundo enquanto vivem nela. O jovem que foi procurar ossos de baleia na praia com “você” e perdeu o trem-marítimo em ‘Kujira no hone’ é o senhor que tem a resposta para a dúvida do menino de ‘Roujin to umi’: o que é o amor? A dupla que ri dos próprios pés azulados de frio por ficarem tempo demais descalços brincando de pular poças d’água em ‘Good Shoes’ é a mesma que, anos depois, se distanciou ao percorrer cada um a própria jornada, deixando para trás castelos de areia e uma chuva de estrelas em ‘Hoshi wo otosu’. Todas as letras do álbum foram traduzidas por fãs, de forma que você também pode visitar essa cidade e tirar suas próprias conclusões a respeito do que é contato.

Swan

O destaque do álbum, pra mim, é ‘Swan’, que já tinha sido lançada como b-side do single de ‘Aoi Shiori’ e, ainda assim, soa nova. Aliás, eu já disse que não tenho nenhum tipo de conhecimento musical, mas a guitarra do começo me remete à de ‘Mellow’, do sleepy.ab, uma das melhores músicas do mundo. Um patinho feio vira cisne e tenta viver a nova realidade enquanto o outro permanece apegado a tudo que foi deixado pra trás, aquilo que está sendo perdido: será que ele também virou cisne? Ele estava pronto pra isso?

Talvez seja difícil ficar pronto pra atravessar um portal desconhecido — para poder seguir em frente, algo precisa ser deixado pra trás. Mas isso que fica ainda pode ser revisitado, talvez não por quem o deixou, mas por quem for trilhar o mesmo caminho.

Feliz aniversário de 10 anos, PORTAL.

Ouça: Spotify, Apple Music.

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SAYONARA-NOSTALGIA

Queria dizer adeus-nostalgia, amanhã seremos mais jovens do que hoje.