Tramp (2012) / Sharon Van Etten

SAYONARA-NOSTALGIA
3 min readFeb 7, 2022

Para onde passos determinados me guiarão

Tramp

Há um conto do Tchekhov em que uma babá é passada pra trás por todos seus patrões, que inventam mil desculpas para descontar seu mísero ordenado. Ela aguenta tudo calada, subserviente, até que um dos homens para quem trabalha resolve cumprir o combinado e pagá-la o que é devido; a babá agradece, e ele conclui que é preciso muita força pra ser frágil nesse mundo. Essa é uma premissa que se aplica a toda a discografia da Sharon Van Etten, que não tem receio de despejar sua vulnerabilidade nas músicas.

Muitas cantoras-compositoras reclamam de terem essa etiqueta escrita “confessional” estampada em sua obra, como se por serem mulheres automaticamente tudo criado fosse uma forma de dar vazão às experiências pessoais. A Sharon, contudo, sempre foi direta ao afirmar que sim, suas composições foram todas tiradas de seu diário — escrever é uma forma de autoanálise para ela, uma maneira de aprender a se comunicar com os outros. Mesmo assim, seu estilo não é muito linear, permitindo que os versos esparsos sejam preenchidos com diversas interpretações.

[Eu sempre interpretei Don’t Do It, do Epic, como um pedido de alguém pra não ser abandonado; ‘você pode ir se quiser e, se quiser, você vai, mas eu não quero que você vá’. Um dia, li um comentário falando sobre como essa música impediu que o autor cometesse suicídio, e fiquei fascinado com essa leitura totalmente oposta e bastante forte]

As serpentes surgem em minha mente quando penso em te perdoar”. Sharon disse várias vezes como teve um namorado não muito amigável, que a impedia de escrever música e até de ter contato com a família dela. A situação ficou tão insuportável que ela se viu obrigada a fugir da cidade onde moravam. Essa informação traz bastante luz a várias composições de seus três primeiros álbuns (Tramp é o terceiro) — fechar os olhos para o que você fez é uma maneira de me trair, de não ser fiel comigo mesma.

É difícil aprender a confiar de novo depois de uma situação um tanto quanto traumática com alguém. Enquanto o primeiro álbum da Sharon é somente voz e violão, o segundo foi gravado junto com uma banda. Já esse Tramp é o fruto de um trabalho em conjunto com muitos outros artistas do Brooklyn, em Nova Iorque, onde ela morava na época, tendo sido produzido pelo Aaron Dessner do National (ou daqueles álbuns da Taylor Swift, se é essa referência que você prefere). Mesmo um pouco mais barulhento às vezes, a essência dos primeiros trabalhos não se perde — ela ainda é uma pessoa machucada buscando curar suas feridas.

Esse processo de cura pode ser visto no título do álbum: Tramp. Pisar forte no chão, com vontade de deixar pegadas; deixar uma marca do caminho trilhado. Além do instrumental mais corpulento, a própria voz da Sharon também demonstra uma força maior do que nos trabalhos anteriores. É como se, amparada por seus amigos, reconhecida por seus colegas, sua autoconfiança aumentasse.

Para onde esses passos agora determinados a levarão é ainda incerto: ainda há ressentimento, dor e mágoas no passado; tudo isso permanece, ainda, nas relações do presente. A intenção de mudança, porém, é o que se destaca — a expansão de cada música e de como elas envolvem quem ouve é uma boa marca disso.

You got to lose sometime

Tramp é o som da reconexão com o exterior; ainda com algumas feridas abertas, mas com o coração da mesma maneira. O som da fragilidade consciente de si mesma e preparada para se deixar mostrar de forma a não repetir traumas do passado. As palavras soltas das músicas são atadas por uma sonoridade expansiva mesmo nas canções mais quietas, pintando um mundo monocromático prestes a aceitar cores mais uma vez.

Feliz aniversário de 10 anos, Tramp.

Ouça: Spotify, Apple Music.

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SAYONARA-NOSTALGIA

Queria dizer adeus-nostalgia, amanhã seremos mais jovens do que hoje.